segunda-feira, 18 de setembro de 2017

MICROCONTO DE HOJE


MORAR EM VENEZA É DIFERENTE DE VISITÁ-LA
                                           --- João Bosco Miquelão*

Desta vez ele não estava visitando a cidade. Encontrava-se a trabalho, incumbido de dar duas palestras numa universidade local.

Há duas semanas estava hospedado na casa de um amigo, italiano, professor daquela universidade, e já adquirira o “espírito” de morador local, pois fazia pequenas caminhadas na vizinhança e até comprava alguns itens para o café da manhã.

Não se sentia muito à vontade, era verdade. A casa do amigo ficava um pouco distante dos locais tradicionalmente visitados pelos turistas.  Era uma zona tipicamente residencial... e veneziana.  Casas seculares, açoitadas pelo vento do Adriático, testemunharam o vai e vem de muitas gerações por aquelas ruelas.  O vêneto, falado pela população local, era diferente do italiano formal a ponto de embaraçá-lo. 

A ausência inesperada de seu anfitrião, também palestrante, que viajara à vizinha Áustria, obrigara-o a ficar sozinho naquela casa que parecia desafiar o tempo de tão antiga. 

Ele era modesto, mas sabia de seu valor na comunidade científica. Era reconhecido internacionalmente. Sua memória para fatos e argumentações era impressionantemente rápida e precisa. Nas palestras, sempre respondia ou rebatia argumentações capciosas com elegância e sem vacilações.

Entretanto, inconfessável era sua pouca capacidade de orientação, e, por que não dizer, a facilidade com que se perdia num local com traçado moderno, com quarteirões e cruzamentos perfeitamente definidos. O que dizer de ruelas estreitas e sinuosas e com bifurcações que levavam ora a um paredão coberto de mofo, ora a uma pracinha sem saída com um chafariz centenário.

A arquitetura medieval o perturbava, pois, para dizer a verdade, a sinuosidade das vielas o desnorteava. Por isso nunca saía daquele trecho, restrito, equivalente à área de um quarteirão moderno. Ali ele encontrava tudo de que precisava: cafés, supermercado, restaurantes e até duas padarias.

Mas, naquele dia de outono ele criara coragem. A umidade que vinha da lagoa-rua próxima e o céu cinzento criaram uma atmosfera que lhe causava tristeza e depressão. Estava disposto a sair do confinamento, a explorar outros “territórios”: iria caminhar além daquele trecho sombrio.

Despreocupadamente desce a pequena ladeira e entra numa viela até então desconhecida.

Observa atentamente a arquitetura dos tempos dos doges, pois aquelas velhas edificações transpiram história, e ele caminha, caminha... Lê placas em vêneto e italiano. Algumas têm ambas as versões. E caminha...

Fica cansado e resolve voltar para casa.

No primeiro cruzamento com outra viela, fica em dúvida: Não sabe em qual delas andara para chegar até àquele ponto.

“Deve ser esta” – pensa. E entra na viela.

Não se dá conta de que quase todas as casas são parecidas. E aquela, sem dúvida, é a que procura: na que está morando há duas semanas.

Ele coloca a velha chave na fechadura e esta se abre facilmente. Ele dá alguns passos e faz gesto de fechar a porta atrás de si. Felizmente o gesto não se completa, pois não reconhece o mobiliário e um tapete desgastado... Ele se dá conta de que está em outra casa. Sua chave abriu a porta por acaso!

No mesmo instante um enorme cão da raça rottweiler surge no fim do corredor e parte em sua direção. Ele mal tem tempo de dar meia volta e fechar a porta atrás de si. O cão bate violentamente do outro lado da porta, late e rosna raivosamente; ele escapa por pouco.

Finalmente chega exausto à verdadeira casa em que está hospedado, já bem mais tarde, usando pacientemente o princípio básico do algoritmo simplex: “testando todas as possibilidades, até que uma delas seja satisfeita”, isto é, passando por várias ruelas até encontrar o verdadeiro “caminho de casa”.

* Autor do livro Plinia trunciflora e outras crônicas (Niterói, 2016 – ISBN 978-85-63749-57-4).


Contato com este blogjbmiquelao@uol.com.br


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