MORAR EM VENEZA É
DIFERENTE DE VISITÁ-LA
--- João
Bosco Miquelão*
Desta vez ele não estava visitando a
cidade. Encontrava-se a trabalho, incumbido de dar duas palestras numa
universidade local.
Há duas semanas estava hospedado na
casa de um amigo, italiano, professor daquela universidade, e já adquirira o
“espírito” de morador local, pois fazia pequenas caminhadas na vizinhança
e até comprava alguns itens para o café da manhã.
Não se sentia muito à vontade, era
verdade. A casa do amigo ficava um pouco distante dos locais tradicionalmente
visitados pelos turistas. Era uma zona tipicamente residencial... e
veneziana. Casas seculares, açoitadas pelo vento do Adriático,
testemunharam o vai e vem de muitas gerações por aquelas ruelas. O
vêneto, falado pela população local, era diferente do italiano formal a ponto
de embaraçá-lo.
A ausência inesperada de seu anfitrião,
também palestrante, que viajara à vizinha Áustria, obrigara-o a ficar sozinho
naquela casa que parecia desafiar o tempo de tão antiga.
Ele era modesto, mas sabia de seu valor
na comunidade científica. Era reconhecido internacionalmente. Sua memória para
fatos e argumentações era impressionantemente rápida e precisa. Nas palestras,
sempre respondia ou rebatia argumentações capciosas com elegância e sem
vacilações.
Entretanto, inconfessável era sua pouca
capacidade de orientação, e, por que não dizer, a facilidade com que se perdia
num local com traçado moderno, com quarteirões e cruzamentos perfeitamente
definidos. O que dizer de ruelas estreitas e sinuosas e com bifurcações que
levavam ora a um paredão coberto de mofo, ora a uma pracinha sem saída com um
chafariz centenário.
A arquitetura medieval o perturbava,
pois, para dizer a verdade, a sinuosidade das vielas o desnorteava. Por isso
nunca saía daquele trecho, restrito, equivalente à área de um quarteirão
moderno. Ali ele encontrava tudo de que precisava: cafés, supermercado,
restaurantes e até duas padarias.
Mas, naquele dia de outono ele criara
coragem. A umidade que vinha da lagoa-rua próxima e o céu cinzento criaram uma
atmosfera que lhe causava tristeza e depressão. Estava disposto a sair do
confinamento, a explorar outros “territórios”: iria caminhar além daquele trecho
sombrio.
Despreocupadamente desce a pequena
ladeira e entra numa viela até então desconhecida.
Observa atentamente a arquitetura dos
tempos dos doges, pois aquelas velhas edificações transpiram história, e ele
caminha, caminha... Lê placas em vêneto e italiano. Algumas têm ambas as
versões. E caminha...
Fica cansado e resolve voltar para
casa.
No primeiro cruzamento com outra viela,
fica em dúvida: Não sabe em qual delas andara para chegar até àquele ponto.
“Deve ser esta” – pensa. E entra na
viela.
Não se dá conta de que quase todas as
casas são parecidas. E aquela, sem dúvida, é a que procura: na que está morando
há duas semanas.
Ele coloca a velha chave na fechadura e
esta se abre facilmente. Ele dá alguns passos e faz gesto de fechar a porta
atrás de si. Felizmente o gesto não se completa, pois não reconhece o
mobiliário e um tapete desgastado... Ele se dá conta de que está em outra casa.
Sua chave abriu a porta por acaso!
No mesmo instante um enorme cão da raça
rottweiler surge no fim do corredor e parte em sua direção. Ele mal tem tempo
de dar meia volta e fechar a porta atrás de si. O cão bate violentamente do
outro lado da porta, late e rosna raivosamente; ele escapa por pouco.
Finalmente chega exausto à verdadeira
casa em que está hospedado, já bem mais tarde, usando pacientemente o princípio
básico do algoritmo simplex: “testando todas as possibilidades, até que uma
delas seja satisfeita”, isto é, passando por várias ruelas até encontrar o verdadeiro
“caminho de casa”.
* Autor
do livro Plinia trunciflora e outras
crônicas (Niterói, 2016 – ISBN 978-85-63749-57-4).